Crónica terceira
Já fui paneleiro. Brevíssimo paneleiro. Tão depressa condenado como sumariamente absolvido.
Era o ano de 1989. Habitava o rés-do-chão do número 9 da Rua de S. Miguel, no Porto. Um velho e cansado edifício que, descobriu-se há pouco, ocupa o lugar que antigamente foi de uma Sinagoga.
Espantosa rua aquela. Do lado de cima, ao dobrar da esquina ficava a sede local da Polícia Judiciária. Fechados no sorumbático edifício com maciças portas, os polícias tratavam das suas coisas policiais. Na rua, ocasionais vendedores de droga cuidavam de aplacar o seu vício. Rua plácida e preguiçosa, tinha também a sua vendeira de peixe: uma desgastada caixa de sardinhas substituía com denodo o frigorífico e o estreito passeio também desempenhava bem o seu papel de balcão. À noite, jogava-se às cartas ao ar livre e a dinheiro.
A minha filha mais velha tinha acabado de chegar.
E com ela as fraldas. Rumas de fraldas, todos os dias. Fraldas ainda sem prometidas habilidades para reter enxurradas e enchentes, capazes de estancar o Cávado e de pôr em sentido respeito o Minho, deixando ainda um suave rasto de odor a lavanda. Fraldas, enfim, que eram apenas fraldas: tecidas em algodão branco e reutilizáveis. Havia um pequeno e amoroso ritual doméstico: secar, recolher, passar a ferro, colocá-las aos pares, esticar pelas orelhas, dobrar em triângulo a primeira vez e repetir a dobra. Mas isso era depois. Antes, havia que as lavar.
Abaixo da porta da cozinha, havia um bocadinho de terreno. Desse maravilhoso camarote particular era-nos servido o Porto. À esquerda, a velha Sé, a ponte de D. Luís I. Mesmo em frente, o olhar esbarrava na formosa cúpula do Palácio da Bolsa. Do lado de lá, Gaia ajoelhava-se, em vénia, para o magnífico Douro.
Nesse terreninho estava o tanque de lavar.
Por esses dias fazia calor. Avental de plástico posto sobre o tronco nu, começou a diária lavagem. Primeiro, as fraldas pouco sujas. Depois, as de có-có. Uma água. Duas águas. Três águas. Torcer bem. Sacudir com energia. E estender no arame.
No último andar do prédio do lado, à janela, uma rapariga agita-se: vinde ver, vinde ver, depressa. Da outra janela surgem mais cabeças de raparigas. E de pronto sentenciam e decapitam a minha masculinidade. Um gajo a tratar de roupa de bé-bé?, é paneleiro! Só pode ser paneleiro. Viçosa risada geral.
Foi curto o meu paneleirismo. Durou uns metros medidos em poucos em passos. Quando voltei com mais fraldas, as molas presas nos dentes, alguma das moças reparou: olha!... mas tem barbas! Um paneleiro com barbas!, onde é que já se viu? O breve impasse foi resolvido com uma decisão salomónica: afinal não é paneleiro, só está a fazer uma paneleirice.
Já fui paneleiro. Brevíssimo paneleiro. Tão depressa condenado como sumariamente absolvido.
Era o ano de 1989. Habitava o rés-do-chão do número 9 da Rua de S. Miguel, no Porto. Um velho e cansado edifício que, descobriu-se há pouco, ocupa o lugar que antigamente foi de uma Sinagoga.
Espantosa rua aquela. Do lado de cima, ao dobrar da esquina ficava a sede local da Polícia Judiciária. Fechados no sorumbático edifício com maciças portas, os polícias tratavam das suas coisas policiais. Na rua, ocasionais vendedores de droga cuidavam de aplacar o seu vício. Rua plácida e preguiçosa, tinha também a sua vendeira de peixe: uma desgastada caixa de sardinhas substituía com denodo o frigorífico e o estreito passeio também desempenhava bem o seu papel de balcão. À noite, jogava-se às cartas ao ar livre e a dinheiro.
A minha filha mais velha tinha acabado de chegar.
E com ela as fraldas. Rumas de fraldas, todos os dias. Fraldas ainda sem prometidas habilidades para reter enxurradas e enchentes, capazes de estancar o Cávado e de pôr em sentido respeito o Minho, deixando ainda um suave rasto de odor a lavanda. Fraldas, enfim, que eram apenas fraldas: tecidas em algodão branco e reutilizáveis. Havia um pequeno e amoroso ritual doméstico: secar, recolher, passar a ferro, colocá-las aos pares, esticar pelas orelhas, dobrar em triângulo a primeira vez e repetir a dobra. Mas isso era depois. Antes, havia que as lavar.
Abaixo da porta da cozinha, havia um bocadinho de terreno. Desse maravilhoso camarote particular era-nos servido o Porto. À esquerda, a velha Sé, a ponte de D. Luís I. Mesmo em frente, o olhar esbarrava na formosa cúpula do Palácio da Bolsa. Do lado de lá, Gaia ajoelhava-se, em vénia, para o magnífico Douro.
Nesse terreninho estava o tanque de lavar.
Por esses dias fazia calor. Avental de plástico posto sobre o tronco nu, começou a diária lavagem. Primeiro, as fraldas pouco sujas. Depois, as de có-có. Uma água. Duas águas. Três águas. Torcer bem. Sacudir com energia. E estender no arame.
No último andar do prédio do lado, à janela, uma rapariga agita-se: vinde ver, vinde ver, depressa. Da outra janela surgem mais cabeças de raparigas. E de pronto sentenciam e decapitam a minha masculinidade. Um gajo a tratar de roupa de bé-bé?, é paneleiro! Só pode ser paneleiro. Viçosa risada geral.
Foi curto o meu paneleirismo. Durou uns metros medidos em poucos em passos. Quando voltei com mais fraldas, as molas presas nos dentes, alguma das moças reparou: olha!... mas tem barbas! Um paneleiro com barbas!, onde é que já se viu? O breve impasse foi resolvido com uma decisão salomónica: afinal não é paneleiro, só está a fazer uma paneleirice.
Texto: José Carlos Braga
Foto: Nuno Sousa
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